quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O ano do pensamento mágico...

O Ano do Pensamento Mágico Teatro Nacional D. Maria IITeatroQua-Dom A morte súbita é como um acto de terrorismo. Repentina e surgida do nada estabelece o caos e a dor. Altera a “ordem natural” das coisas, deixando nos sobreviventes sentimentos de perda, perplexidade e culpa complexos e contraditórios.
E ainda, por lidar, sem livro de instruções nem guia de conduta, o luto como desafio de sobrevivência – em O Ano do Pensamento Mágico exposto sem pudor, de certo modo como quem se psicanalisa em público.
Ao centro está uma mulher, sentada numa poltrona, só na imensidão do palco. Por detrás dela um cérebro estilizado (um cenário, de bastante mau gosto, assinado por Catarina Amaro), a lembrar onde tudo acontece e se desenvolve e fenece. A actriz, a sua personagem, fala em entoações estudadas e quebras planeadas com uma fluidez plácida, própria de quem viveu e a custo prossegue o caminho imposto pela nova ordem, relatando a tragédia, a temível tempestade que acossou o mais íntimo e pessoal e privado de Joan Didion (n. 1934) quando, num ápice, o marido caiu e se tornou cadáver no chão do apartamento, pouco depois de visitarem a filha em coma.
Em cena está a adaptação do livro que a jornalista, escritora e argumentista norte-americana publicou sobre a morte do marido, o também jornalista, escritor e argumentista John Gregory Dunne, no final de 2003 (peça que Vanessa Redgrave estreou em 2007, dois anos depois de Quintana, a filha do casal falecer.) Aqui, Eunice Muñoz é a mulher que se revela, na encenação espartana de Diogo Infante, alter-ego da autora, durante um ano a viver no limbo dos sentimentos, entre a lucidez e a ilusão e a negação, expurgando a loucura e/ou procurando um rumo através da catarse da escrita. Nas suas palavras, nas expressões do seu rosto, na subtil movimentação do corpo constrói eloquentemente a narração de um drama – pessoal e, desta vez, transmissível – de maneira coerente, mas por vezes um pouco distante e fria. Representa uma história, umas vezes profundamente pessoal e interior, dilacerada e confusa, outras elaboradamente cerebral, rigidamente racional antes de, uma e outra vez, sucumbir à sensação de fim e, relutantemente primeiro, obstinadamente depois, procurar uma luz, uma saída, um progresso após a prostração e o desgosto.
Apesar da escrita elegante de Didion, no texto habita um tom de auto-compaixão que, temperado pela erudição da autora, aos poucos o transforma numa espécie de tratado sobre o luto, encaminhando-o para o território da auto-ajuda, que pode ser entendido como exploração exibicionista do sofrimento e da dor. Até porque houve um tempo, ainda há pouco tempo, em que a morte era geralmente vivida em privado. Mas o tempo evolui, porém – como diz António Barreto – nem sempre para melhor.
Rui Monteiro

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